segunda-feira, 13 de agosto de 2012

"O argumento de que somos um país construído na miscigenação não invalida a verdade de que somos um país erguido com preconceitos e discriminações que precisam ser corrigidos, e com urgência."

Do Direto da Redação, via blog do Liberdade Aqui!


Um bom conceito para democracia: "A nossa cota na redenção"

A nossa cota na redenção
Rodolpho Motta Lima


Se considerarmos como um bom conceito para democracia aquele que a afirma como um regime político em que o Governo é “do povo, pelo povo, para o povo”, e, a partir daí, tentarmos estabelecer uma espécie de índice de “Democracia Interna Bruta” (substituindo o “PIB” pelo “DIB” como elemento aferidor do progresso nacional), inevitavelmente teremos que analisar em que medida o conjunto de leis do país vem evoluindo de forma a corresponder às aspirações cidadãs do seu povo.

Muitas vezes, o próprio povo , fazendo valer o verdadeiro sentido da expressão “opinião pública”, é quem toma a iniciativa de provocar a legislação de que se ressente, revelando, nessas oportunidades, a omissão daqueles a quem conferiu representabilidade. Esse é o caso da lei da “ficha limpa”, que provavelmente jamais teria sido elaborada pelos nossos legisladores se não tivesse havido a pressão popular.

Paradoxalmente, é fato raro que o povo consiga sobrepor-se a seus “representantes” e veja atendidos, pelo sistema legal, os seus interesses. Muitas vezes, o próprio povo perde oportunidades que lhe são “concedidas”, não percebendo manipulações que escondem interesses que não são os da cidadania. Penso que isso aconteceu, por exemplo, na consulta popular (uma das raras em nosso país) feita sobre o desarmamento, quando uma forte campanha da turma das armas , amparada por expressivo apoio midiático, consagrou a tese de que era necessário preservar entre nós a venda legal de armamentos.

A recente votação do Código Florestal é outro exemplo significativo do distanciamento entre os interesses legítimos da população e as espúrias conveniências dos assim chamados “ruralistas”, um eufemismo para mascarar muitos latifundiários e exploradores responsáveis pelo desmatamento de nossas matas. Uma “bancada” surreal - quase um terço do Congresso – que representa algo totalmente contrário aos interesses do povo eleitor e, por extensão, do país.

Mas nem tudo está perdido nesse campo. Refiro-me aqui à recente deliberação do Senado que, como resultado de legítimas pressões, vem atender a reclamos da sociedade, aprovando o projeto que regulamenta o sistema de cotas raciais e sociais nas universidades públicas federais em todo o país. Metade das vagas nas universidades deve ser separada para cotas e essa reserva – para alunos da rede pública - será dividida meio a meio, entre cotas sociais (para os comprovadamente carentes) e raciais (destinadas aos estudantes negros, pardos ou indígenas, conforme distribuição censitária em cada estado da Federação).

Em outra oportunidade, já expus minha posição aqui no DR, mas nunca é demais reforçá-la, até porque a discussão continua. Acabo de ler um editorial do Globo contrário a essa medida, alegando que ela é ”racista”, ‘‘prejudicial ao ensino superior”, e que “o azar ficou para o branco pobre”. O texto também se refere à “preocupação de não relegar a segundo plano algo vital no ensino: o mérito de cada um, independentemente da “raça”. Geralmente não concordo com o pensamento “global”, e agora não é diferente. É uma questão ideológica, a velha e sempre presente questão da esquerda que defende a redenção social e da direita que quer ver mantidos privilégios. O editorial do Globo considera “falacioso” o argumento da dívida histórica dos brancos para com os negros como justificativa para as cotas raciais , argumentando que “negros também foram donos e comerciantes de escravos”. A conhecida técnica argumentativa da falsa generalização, que não resiste a um segundo de reflexão. A escravidão entre nós foi basicamente praticada pelos brancos contra os negros. Simples assim. E, a partir do processo de abolição, em nenhum momento se incrementaram seriamente, ao longo de mais de um século, medidas de inclusão dos negros, ainda hoje componentes majoritários dos segmentos sociais menos favorecidos.

O argumento de que somos um país construído na miscigenação não invalida a verdade de que somos um país erguido com preconceitos e discriminações que precisam ser corrigidos, e com urgência. É preciso mesmo radicalizar para, em um futuro que esperamos não muito distante, cotas não sejam mais necessárias. Agora, a hora é de saldar a dívida.

A questão do mérito não pode ser desprezada, é claro. Como professor, jamais negaria sua importância. Mas ela está, a meu ver, garantida pelas vagas que estão fora das cotas. Também como professor, acompanhei o perverso e intencional processo de deterioração do ensino público ao longo das últimas décadas, desde os anos 60, e sei que esse panorama precisará de uma geração para ser alterado. Não dá para esperar.

E aos que alegam que a adoção da cota é prejudicial, convido, mais uma vez, a verificarem os números apresentados pela UERJ – primeira a instituir esse sistema no Rio de janeiro – que revelam que os estudantes cotistas são menos reprovados, desistem menos do curso e se formam mais do que os demais colegas. Sem quebra da qualidade do ensino na Universidade. As razões são óbvias: o cotista agarra essa oportunidade como a única na vida, não quer nem pode desperdiçá-la e por isso estuda e, com superação, vence as dificuldades. Se somos mesmo um povo tendente à miscigenação, devemos todos estar satisfeitos com esse panorama. 

Sobre o autor deste artigoRodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.

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